sábado, 20 de março de 2010

Futuro da democracia no mundo dependerá em boa parte das classes médias chinesas, indianas e brasileiras

Estudantes fazem protesto em Brasília em nome da isonomia democrática brasileira.




Lluís Bassets
São as classes médias que mandam. Pelo menos nos países democráticos, onde os governantes devem atender, sobretudo, a suas necessidades para ganhar eleições. São muito diferentes de um país para outro e mais ainda de um continente para outro, mas em toda parte querem finalmente o mesmo: paz, estabilidade e prosperidade, e traduzido para questões concretas: postos de trabalho, salários decentes, moradias dignas, educação de qualidade, aposentadorias razoáveis.



À diferença das classes dominantes em períodos anteriores da história da humanidade, estas são amplas e extensas. Nada a ver com a aristocracia do Antigo Regime nem com a alta burguesia do capitalismo clássico, elitistas e fechadas, com frequência condenadas ao isolamento e à decadência. Pode ocorrer que não sejam democráticas em seus valores ou pelo sistema político em que se enquadram, mas o são sociologicamente ali onde são hegemônicas.
São classes lutadoras, embora sua luta nada tenha a ver com a luta de classes. Lutam por existir e crescer: o Partido Comunista Chinês reivindica a maior contribuição para a história das classes médias. Afirma que tirou da pobreza 500 milhões de pessoas em uma geração, mais de um terço de sua população atual. E se seus dirigentes preferem não ouvir nem falar de abertura democrática e situam o cume de sua modernização para daqui a cem anos, é porque ainda contam com 150 milhões de pobres aos quais não chegaram os benefícios do capitalismo comunista, e estão firmemente convencidos de que não vão tirá-los da pobreza em um sistema descentralizado, pluralista e respeitoso com os direitos humanos como o que exigem os dissidentes e propõem os países ocidentais.
As classes médias crescerão na Ásia em um ritmo desenfreado nos próximos anos, mas estancarão ou só crescerão ligeiramente no resto do planeta e sobretudo onde já são o grosso da sociedade, como é o caso do que costumamos chamar de Ocidente. Embora a mutação seja pacífica, isto é, sem guerras entre as classes médias dos diversos países e regiões, sabemos que ocorrerá e já está ocorrendo em forma de uma intensa competição.
Mas as grandes mudanças econômicas e geopolíticas que nos esperam neste século 21, e que em boa medida já começaram, são produtos fundamentalmente da expansão das classes médias em todo o mundo. A globalização que promoveu o crescimento das classes médias tem duas faces: uma positiva, que distribui benefícios sinérgicos a todos; e outra negativa, na qual os efeitos são de soma zero. Exemplos: os empregos que se criam na China desaparecem dos EUA; e o petróleo que consomem os carros em Paris sobe de preço quando são muitos os que querem andar de carro em Mumbai; as emissões para a atmosfera dos países industrializados ao longo da história limitam as possibilidades de futuro desenvolvimento dos países emergentes e os obrigam a investir em tecnologias menos poluidoras.

Como em todo jogo de soma zero, o que os novos ganham os mais velhos perdem, na distribuição do poder mundial e no peso de cada um nas instituições internacionais. É a mutação do G8 para o G20 e inclusive a desenvoltura com que os dirigentes dessas novas potências do século 21 ousam enfrentar o presidente dos EUA.




Sem suas classes médias por trás, pressionando e exigindo, com um enorme potencial de consumo, um peso crescente na economia global e inclusive um novo orgulho nacional, não seriam possíveis essas novas atitudes que enlouquecem as diplomacias americana e europeia. As classes médias europeias e americanas demonstraram que onde crescem melhor é em regimes de liberdade e democracia. Mas não significa que a liberdade e a democracia sejam o abono imprescindível para sua expansão.

Na Espanha conhecemos de primeira mão a expansão das classes médias sob a ditadura. Graças à ditadura, dirão os céticos em matéria de liberdades. Apesar da ditadura, responderão os liberais. Não é uma reflexão historicista: vale para o maior viveiro de classes médias da história que é a China. E transcende o âmbito chinês. O mundo está se desocidentalizando em marcha forçada, segundo expressão de Javier Solano, utilizada há poucos dias em Barcelona, em sua primeira conferência como presidente do Centro para a Economia Global e a Geopolítica do Esade.
E já estamos nos conformando com o deslocamento de seu centro de gravidade. O problema é saber se vamos nos conformar também com que nossos valores fiquem diluídos ou desvalorizados. O futuro das liberdades e da democracia no mundo dependerá em boa parte de como as classes médias chinesas, indianas e brasileiras encarem sua relação com as liberdades individuais e a democracia parlamentar. Nada menos.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves